MÁRIO SÉRGIO BAGGIO
Oração
No princípio era o verbo. Depois vieram o sujeito e o predicado e, em seguida, a turma toda: os objetos, os adjuntos, os predicativos, os complementos verbais e nominais. E Deus ficou muito contente: nascia a primeira oração.
Impulso
Não conseguiu se conter: tinha que tocar, beijar, acariciar esse corpo que se oferecia a ele assim, sem qualquer resistência. Faria a autópsia depois, com calma.
Vida em comum
Ela gostava de assistir à novela das seis; ele, à das nove. No intervalo entre as duas atrações cultivavam o silêncio. Capítulo a capítulo, foram infelizes para sempre.
Inocência
À noite, o pai entrava com cuidado no quarto da caçula. Ao sair, trazia com ele mais uma inocência destruída.
Vida nova
Aposentado, Agenor passa as tardes jogando dominó com os amigos. À noite liga o computador e se transforma num garanhão virtual. Adota sempre o mesmo nickname: "Seu Vagem".
Drummond 2.0
Tinha uma pedra no meio do caminho. Ele se abaixou e a pegou. Pôs no cachimbo. Acendeu. Fumou.
Carente
Era um homem tão solitário, e tão triste, que quando um mendigo lhe pedia dinheiro ele dava, mas pedia um abraço em troca.
Machado
Só agora entendi por que Bentinho ficava suspirando pelos cantos. Também, pudera! Os permanentes olhos de ressaca de Capitu não deixavam dúvida: a mulher vivia bêbada!
Resposta imediata
Publicou no Twitter: "A solidão vai acabar comigo!". Quarenta milhões de seguidores responderam: "Comigo também!".
Prático
Era um marido pragmático. Com ele não tinha esse blá-blá-blá romântico de Romeu e Julieta, Orfeu e Eurídice, Dante e Beatriz, Tristão e Isolda, Dom Quixote e Dulcinéia, Ulisses e Penélope, Peri e Ceci, que nada! Afogou a mulher no mar e se jogou na balada dos solteiros.
Enigma
Tomou coragem e foi até ela. Perguntou. Ela disse que sim. "Puxa vida", pensou ele, "como seria bom se ela tivesse dito que não!".
Barato, barato
Pôs os sentimentos na vitrine. Ofereceram R$10.
Quem se importa?
Na cidade alagada, não se sabia o que era barro, casa ou criança. Quem se importa? A chuva prevista para amanhã não fará distinção sobre o que arrastar.
Comendo melhor
Percebeu que a mulher tinha outro quando ela passou a se arrumar melhor, a cozinhar melhor. Deu de ombros. Pelo menos agora teria comida decente na mesa.
Ninguém ouviu
Com a cantoria do Hino Nacional no pátio da escola, ninguém ouviu quando, na sala 102, Clarinha gritou "Não!" ao professor Júlio.
A saideira
Ficou até quase o bar fechar. O garçom perguntou: "Deseja mais alguma coisa, senhor?". Levantou os olhos e disse baixinho: "Amor-próprio. Duplo.".
Juro, amorzinho!
Falou num só fôlego e sem gaguejar: "Eu desci do carro e ela passou perto, escorregou e caiu no meu colo, a blusa rasgou e de repente o bico de um seio entrou na minha boca e com o movimento brusco do escorregão as coxas dela acabaram em volta do meu pescoço. Foi tudo muito inesperado, amorzinho, eu juro!".
O que o olho não vê
Era manco, possuía o rosto deformado e uma vida infeliz. Experimentou um pouco de alegria quando chegou à cidade dos cegos.
Gente boa
Um dia vou encerrar minha conta nas redes sociais só para ver como é que é. Assim terei tempo para conhecer as pessoas que vivem em minha casa. Ouvi dizer que são minha família e parecem ser gente boa.
Na feira
O vendedor ambulante chegou à feira cheio de fé e esperança. Saiu de lá sem nenhuma fé ou esperança. É um negócio muito lucrativo vender fé e esperança.
Ele chegou!
O teatro nunca tinha visto tamanha saia justa. Ninguém soube o que fazer quando, lá pelo meio da peça, dando uma desculpa esfarrapada e um sorriso amarelo, Godot chegou.
Evolução
Anos 90:
- Mamãe, vou à festa da Paulinha.
Anos 2000:
- Mamãe, vou ao Mega Rock Bitches Hot Sex & Drugs Party Festival 2.0.
Ego
- Você tem um ego imenso, insuportável!
- Eu?!
- Sim, senhor, você. Freud dizia que...
- Alto lá, deixe esse cara fora da conversa. Estamos falando de mim!
Antes que seja tarde
Olharam-se nos olhos, graves, sérios, feridos, magoados, tristes, dilacerados. Perceberam que era hora de cada um tomar o seu caminho, antes que o ódio destruísse a história que tinham construído juntos.
Medo
Não era um filme de zumbis, nem de vampiros nem nada parecido com isso. Era de amor, e deu medo.
Insistente
Ela me beija, beija e beija. Eu continuo aqui, coaxando, coaxando e coaxando, e nada.
Xô!
Presente de grego? Nunca mais! Desde aquele dia os troianos só aceitam presentes em espécie.
Alucinação
Saí cedo para trabalhar e o vi do outro lado da rua, olhando-me com um sorriso nos lábios. Era um elefante vestido de bailarina. É óbvio que se trata de uma alucinação, porque, como todo mundo sabe e a lógica nos ensina, os elefantes não sabem se vestir.
O pai
Flavinha já estava com dez anos, mas seu pai ainda insistia em dar banho nela.
Espertinha
Enquanto bebia o suco chupando pelo canudinho, encostada no balcão, a moça linda flertava com o atendente da lanchonete. Perguntou a ele:
- Vem cá, você gostaria de ser o pai dos meus filhos?
- Claro, meu tesouro. Vamos fazer o primeiro agora?
Ela chamou os dois garotos e se virou para o atendente:
- Aqui estão eles. Esse gordinho come cinco vezes por dia e o outro sabe arrotar o alfabeto inteiro. São bem espertinhos, viu?
Deu um beijo em cada um e caiu fora dali.
Sobrevivente
Uma hecatombe dizimou a humanidade da face da Terra. Na superfície devastada, Gregor Samsa caminha em busca de alimento.
Juntos
Eu e ela nascemos no mesmo dia, no mesmo ano. Ganhei dela o primeiro carinho, o primeiro sorriso. Tornamo-nos amigos inseparáveis desde o começo e isso dura até hoje, mesmo que ela tenha aprendido a falar e eu só consiga abanar o rabinho.
Teatro
Primeiro ato: ator declama "Tudo é nada e nada é tudo".
Segundo ato: atriz declama "Tudo é nada e nada é tudo".
Terceiro ato: ator e atriz declamam "Tudo é nada e nada é tudo".
Eu arrebento a cara de quem me convidar para outra sessão de teatro experimental!
Pânico
Ela não tinha medo das bofetadas que o marido lhe dava. Os beijos dele, esses sim, deixavam-na em pânico.
Na hora certa
Roubaram minha carteira, quebraram minha perna direita em dois lugares, perdi dois dentes e transformaram meu fígado numa geleia. Está cada vez mais difícil andar de metrô em São Paulo. Mas consegui chegar ao trabalho na hora certa.
E estamos conversados
Sete dias, ouviram bem? Eu tive apenas sete dias! Como alguém pode fazer algo perfeito em sete dias? Tratem de se contentar com esse mundo, pois é o que tem para hoje.
Igualzinho antes
O professor de Filosofia encerrou assim sua aula:
- E no tempo em que Nietzsche escreveu "Assim Falou Zaratustra", as galinhas botavam ovo do mesmo tamanho que agora.
Xampu
No supermercado, Rapunzel empurra seu carrinho de compras com centenas de frascos de xampu. Na fila do caixa, enquanto pega seu cartão de crédito, o príncipe só pensa nas tesouras da Dalila, aquela do Sansão.
Mais fácil
Ele era um homem muito rico. Muito prático também: em vez de fazer o amor, preferia comprá-lo já pronto.
Liberdade
Graças à liberdade de expressão que temos hoje no país, é possível dizer que um governante é corrupto e inútil sem que nada aconteça com a gente. Nem com o governante.
Tomara que não
A mulher espera o marido à janela todos os dias, com a esperança de que hoje ele não volte.
Valente
No restaurante, o casal em crise acabou de discutir a relação.
- E então, como se sente agora, querida? - perguntou ele.
- Assim que sairmos eu vou arrebentar a sua boca - disse ela, com um sorriso.
Ele riu sarcasticamente como se pensasse: "Essa minha mulher é mesmo bobinha".
Na rua, antes mesmo que o manobrista trouxesse o carro, ela arrebentou a boca do marido com o punho fechado.
Happy end
Otelo está espumando de raiva. Ele acaba de descobrir que Shakespeare escreveu histórias em que o mocinho e a mocinha acabam juntos e felizes para sempre.
Vingança
Ela odiava tanto o ex-marido, e desejava tão fortemente se vingar por tudo o que ele fizera, que, quando ele a procurou para reatar o relacionamento, ela aceitou na hora.
Sem interesse
Ela chegou à estação quando o trem estava fechando as portas. Ainda conseguiu vê-lo lá dentro do vagão e soube de imediato que aquele desconhecido era o homem de sua vida. Enquanto esperava o próximo trem, imaginou sair com ele, ir ao cinema de mãos dadas, jantar à luz de velas, dormir com ele... Perdeu o interesse na hora.
Os personagens
- Eu nunca escrevi nada. Como faço para começar?, perguntou o aprendiz de escritor.
- Aprenda a ouvir primeiro, disse o escritor veterano.
- Ouvir o quê?, inquietou-se o aprendiz.
Nesse instante os dois escutaram gritos ferozes, aflitos e também vários golpes violentos na porta.
- Quem são?, quis saber o novato.
- Os personagens. Sempre que alguém pensa em escrever, eles aparecem. Ouça-os.
A nova brincadeira
O casal de amiguinhos brinca na sala da casa quando, num movimento brusco, a blusinha da garota se rasga, revelando um pedaço de seu peito. Olham-se e sorriem. Percebem que, de agora em diante, suas brincadeiras serão bem diferentes.
A gravata
Cansado da noite de autógrafos, o escritor chega a seu apartamento louco para cair na cama. Tira o paletó e a gravata, jogando-os sobre a cama. Enquanto tira a camisa, olha para a gravata e pensa que se parece com uma cobra. "Vou usar essa metáfora em algum texto", pensa, enquanto se senta na cama para tirar os sapatos. É nesse momento que a gravata salta e se enrosca em seu pescoço, matando-o.
Diferenças
Há muitas diferenças entre o céu e o inferno. Uma delas é que no céu se lê poesia, e no inferno alguém tenta explicá-la.
Os interesseiros
O advogado abriu o testamento do avô e leu: "Não há herança!". A família toda imediatamente parou de chorar.
Paquiderme
Comprei um balcão de bar só para mim. Estava farto de sair todas as noites para beber. Assim que chegou, montei-o num canto da sala e em seguida me pus do lado de fora e pedi uma cerveja. Passei para o outro lado e perguntei: "Com álcool ou sem álcool?". Voltei para o lado de fora e respondi: "Claro que é com álcool, estúpido!". Retornei para o lado de dentro: "Estúpido é você, seu imbecil!". Novamente fui para o lado de fora e bati com o punho fechado sobre a superfície: "Ninguém me trata assim, ouviu bem? Vou para outro bar.". E saí batendo a porta. O outro ficou lá atrás do balcão, com aquela cara de paquiderme.
Tempos difíceis
Agora ela pensa que é madame e só se alimenta com os ricaços. Antes isso não importava, e ela ia com todos: magros ou gordinhos, pobres ou ricos, negros ou de qualquer outra cor, altos ou baixinhos. Não havia distinção. Tudo mudou quando apareceu esse milionário, e ela pôs na cabeça que o saldo bancário do sujeito dava outro sabor. Tonta! Estúpida! Será que ela não percebe como estão difíceis esses tempos para nós, canibais?
Eu não!
Não, mil vezes não! Não sou desses políticos corruptos! Um político corrupto não tem vergonha na cara, não tem moral e perdeu definitivamente o senso ético. Eu não! Eu ainda fico vermelho e me constranjo muitíssimo quando me subornam.
Os anos passam muito rápido
Aquele tobogã era tão alto, mas tão alto, que cada criança que descia por ele chegava ao chão com dois anos a mais.
Fingindo de morto
Não muito tempo atrás papai costumava morrer duas vezes por dia, quase sempre nas ruas do centro, onde havia mais gente. A multidão se aglomerava em volta dele e eu me encarregava de subtrair a carteira das pessoas que se compadeciam daquele pobre senhor caído no chão. Minha irmãzinha, com suas mãos pequenas, era mais rápida que eu no fuçar os bolsos e sempre conseguia mais. O que ganhávamos dava para o gasto e assim íamos vivendo. As coisas começaram a mudar há uns meses, quando papai passou a morrer umas quinze vezes por dia e, mesmo assim, só conseguíamos umas notas amassadas de pouco valor e algumas moedas. Faz umas semanas que a situação ficou desesperadora, já que quase mais ninguém parava para ver o que acontecia àquele pobre velho caído. De uns dias para cá a situação se inverteu e, quando papai morre na calçada, sempre aparecem uns sujeitos para remexer os bolsos dele, à procura de algo de valor. Agora, nem mais esses sujeitos dão as caras e eu e minha irmãzinha temos que ser rápidos e fugir dos cachorros.
Similaridades
Responder "pelo menos você tem emprego" a quem se queixa do trabalho é o mesmo que dizer "pelo menos você tem marido" a uma mulher que apanha do companheiro.
Na geladeira
Não se pode dizer que Joelma seja uma mulher fiel. Ela já se deitou com o padeiro, o verdureiro, o açougueiro, o quitandeiro e o dono do supermercado da esquina. A sua geladeira está sempre cheia e comida é o que não falta em sua casa. Os boatos sobre sua infidelidade já chegaram aos ouvidos de Ariovaldo, o marido, mas ele não se importa. Está economizando bastante e no mês que vem comprará uma geladeira maior.
Acontece com todo mundo
Se,
na frente de um açougue, você passar a língua pelo lábio superior ante a visão
de uma costela de boi; se você sentir que sua pressão quase vai a zero ao ver
uma peça de picanha; se você suar frio e quase desfalecer quando avistar um
pedaço vermelho de alcatra; se você sentir que vai começar a delirar na frente
daquele pedaço generoso de maminha, não se preocupe: isso não é morbidez e
acontece com todo mundo durante a Semana Santa.